Ensina-nos a tradição conservadora que o estudo da História, longe de dever ser encarado com receios quase supersticiosos, encerra ensinamentos lapidares sobre o percurso colectivo de um povo que, como explica o Visconde de Bolingbroke no seu Letters On the Use of History, constituem uma ferramenta “conveniente para nos educar para a virtude pública e privada”. Trocado por miúdos, desprezar as lições da História é pedir para repetir os seus erros.
Tristemente – e essa é uma das lições que a História nos ensina - , muitos foram os regimes e as doutrinas a deixar-se seduzir pela perspectiva de, ao invés de se submeterem ao escrutínio da História, a temperarem a gosto, retalhando e reescrevendo conforme melhor servisse os seus intentos. A “tentação totalitária”, como lhe chamou Revel, é fazer do passado tábua rasa e da revolução momento fundacional de uma sociedade nova; de um Homem novo.
Vem esta reflexão a propósito da recente decisão do vereador José Sá Fernandes de, negligenciando propositadamente a manutenção do jardim da Praça do Império, apagar do coração de Lisboa aquele espaço levantado pelo Estado Novo.



É certo que, quando comparadas com os morticínios do jacobinismo ou com as purgas de Stalin, as incursões pela botânica do eleito bloquista - perdão, independente - se afigurarão pouco relevantes. Porém, a elas presidem os mesmos princípios que inspiraram os prosélitos do revisionismo histórico a massacrar multidões nos altares dos "novos valores". Aliás, bem vistas as coisas, o voluntarismo do vereador não andará assim tão longe da política do espírito em nome da qual o regime salazarista e o seu Secretariado de Propaganda Nacional politizaram largos períodos da História lusa.
O Sr. Sá Fernandes, como os jacobinos, parece acreditar que a repetição dos autoritarismos do passado pode ser prevenida através de um novo autoritarismo, desta feita exercido sobre o património. Da mente de onde saiu tamanha genialidade, as massas alfacinhas – e, porque não dizê-lo, mundiais – reclamam agora maior arrojo ainda: para soterrar definitivamente o colonialismo, demula-se o Padrão dos Descobrimentos; para trucidar o fascismo, arrase-se com o viaduto Duarte Pacheco. Admito que os exemplos pareçam ridículos, mas a tese que a eles preside não difere. E, em boa verdade, não me parece particularmente assisado que o combate a um erro se faça mediante a promoção de outro.
Para além do mais, que se saiba, o Sr. Sá Fernandes será uma infinitude de coisas, mas proprietário exclusivo da herança patrimonial lusa não parece ser uma delas. E aconselharia o bom senso que um tamanho paladino do sistema democrático submetesse os seus proselitismos à aprovação de uma reunião camarária ou da Assembleia Municipal que o escrutina. Arrisco mesmo afiançar que talvez isso fosse um contributo mais notável para a preservação do sistema democrático do que o soterramento em ervas daninhas de um jardim histórico lisboeta.
Quanto aos brasões, juro, se libertados da profusão de plantas que presentemente os asfixiam, não vão lançar-se em gritos de Angola é Nossa ou apelar à anexação de Cabo Verde. Darão, porém, testemunho de uma realidade porventura alheia ao Sr. Sá Fernandes: que a História de Lisboa não começou com a sua eleição para vereador; que Portugal tem um passado milenar marcado por uma presença pluricontinental que, longe de estar isenta de erros, não merece por isso ser escamoteada da esfera pública; que a portugalidade se faz de laços culturais e linguísticos e não de uma constante vergonha do passado. E que, na magnífica formulação de Edmund Burke, “aqueles que desconhecem a História estão condenados a repeti-la.”
Como bem nos ensinam as autoridades polacas e alemãs ao manter abertos e visitáveis os antigos campos de concentração nazis, exibir – e estudar – as marcas do passado é condição necessária para evitar incorrer nos mesmos erros. É por isso que o património faz falta. Mais do que o Zé.