Publicado no Panorama.
Desde o referendo não-vinculativo que o legalizou em 2007, o aborto transitou serenamente para o limbo das não-questões do sistema. Progressistas de esquerda e de direita descobriram nele um factor de convergência com a Europa e celebraram na sua aprovação o grande triunfo da urbanidade e do esclarecimento sobre as amarras de uma sociedade conservadora e machista. O aborto seria “raro, seguro e livre”, anunciaram os seus prosélitos. Em pouco tempo, deixou até de ser aborto. Chamámos-lhe IVG e, com o patrocínio do calãozinho anti-séptico e pós-moderno, passou a ser só uma sigla. Os beatos calar-se-iam ao som das trombetas do Progresso inevitável. Não havia mais nada para discutir.



Ao longo do tempo, começámos a perceber que não era bem assim. Começámos a perceber, à medida que crescia o número de queixas de mulheres intimadas a abortar por pressões familiares ou patronais, que um procedimento criado para ser acessível e sigiloso era também permeável a toda a sorte de abusos. Começámos a perceber que, na ânsia de não pressionar nenhuma mulher a desistir de abortar, estava a ser sonegada informação sobre apoios públicos e privados que poderiam evitar centenas de abortos por incapacidade financeira. Começámos a perceber que o número de reincidências crescia de ano para ano e que o acompanhamento psicológico obrigatório poderia aplacar esse flagelo. Começámos a perceber que faltavam justificações para o aborto ser integralmente gratuito, sobretudo enquanto a ampla maioria dos procedimentos médicos pagava taxas moderadoras no SNS. Víamos, ouvíamos e líamos. Poderíamos ignorar?

Em Agosto passado, dando seguimento a uma petição com quase cinquenta mil subscritores, a maioria PSD-CDS intentou reformar a lei do aborto, para solucionar estas matérias. As esquerdas votaram contra tudo. Recusaram que os agentes do Estado procurassem apurar a existência de pressões patronais por detrás da decisão de abortar. Recusaram o apoio psicológico obrigatório. Recusaram a obrigatoriedade de informar as grávidas sobre os apoios financeiros públicos e privados à maternidade. Recusaram que o aborto fosse equiparado aos restantes procedimentos médicos do SNS quanto ao pagamento de taxas. E, por kafkiano que pareça, recusaram que a objecção de consciência dos médicos fosse uma matéria de consciência. A reforma, solitariamente aprovada pelo centro-direita, será agora rechaçada na hora-zero da nova legislatura, selando a união de facto entre as esquerdas. Não é por acaso: é das poucas matérias em que comunistas, socialistas e bloquistas estão de acordo.

Porém, desta vez, não poderão invocar o argumento da convergência europeia – na generalidade dos países civilizados, o aborto paga taxas moderadoras – nem sustentar que se movem em nome dos direitos individuais das mulheres – na verdade, preparam-se para os limitar. Contra a reforma de 2014, levarão de novo à Assembleia a velha lei de 2007, que terá cento e vinte e dois votos favoráveis, na melhor das hipóteses. Há oito anos, teve mais trinta e nove do que isso. Eis como se arranca o aborto do pedestal incontestado do consenso de regime e se lhe vestem as velhas roupagens de questão fracturante. Se o movimento pró-vida não está eternamente grato, deveria estar.

De resto, em vésperas da reabertura pública deste debate, importa esclarecer que o aborto é uma questão moral e, necessariamente, uma questão fracturante. Não opõe os prosélitos do passado aos apoiantes do futuro. Como explicou brilhantemente Raymond Aron, o progresso é, por definição, órfão de profetas e de intérpretes. Também não é a consagração dos direitos individuais da mulher emancipada, em face das prerrogativas comunitárias de uma sociedade retrógrada e patriarcal. Ultrapassado todo esse ruído, a grande questão do aborto reside na protecção da vida em gestação no ventre. O nascituro tem, desde a concepção, um código genético próprio, que não permite que o confundamos com o organismo materno. Sente dor desde as oito semanas – em Portugal, aborta-se até às dez –, o que só torna o procedimento mais desumano. E, sendo verdade que não subsiste autonomamente, é nisso semelhante a um recém-nascido. Sobram, pois, poucos argumentos para justificar a sua dispensabilidade.

Depois, há o lastro disruptivo de oito anos de aborto legal no nosso país. Em 2007, prometeram-nos que o aborto seria “raro, legal e seguro”. Desde então, não parou de crescer o número de abortos por cada mil nascimentos – cento e noventa e três em 2009, duzentos e seis em 2011, duzentos e catorze em 2013. As protagonistas destas histórias são algumas das pessoas mais vulneráveis da sociedade portuguesa: mães solteiras, jovens estudantes, desempregadas. Não há qualquer miragem de emancipação feminina numa grávida forçada a abortar por não ter condições económicas para suportar um filho. Não há laivo de humanidade numa sociedade que oferece o aborto como única alternativa. Não há réstia de progresso no crescimento imparável da percentagem de abortos reincidentes – 20,8% dos abortos por opção da mulher em 2009, 25,9% em 2011, 29% em 2014, de acordo com a DGS.

 Oito anos e cento e quarenta e quatro mil abortos depois, caiu a máscara do consenso imposto. Hoje, como nunca, o aborto não é uma sigla. É uma questão de vidas e de mortes. É incómodo, é sinistro, é brutal. É uma questão de bem e mal. E, se não há entendimento possível com os seus defensores, é porque não se fazem concessões ao mal, nem à morte. Qualquer mulher merece melhor do que o aborto. Qualquer país civilizado procura dar-lho.