terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Uma falta de educação

Uma falta de educação
18:45 por António Pedro Barreiro

Publicado no Panorama.

Quando não está entretida a decretar o fim da austeridade, a gastar centenas de milhares de euros em faqueiros incompletos ou a apelidar democraticamente a oposição de “raivosa”, a espécie de governo que nos calhou em sorte tem-se especializado na reversão de tudo quanto tenha sido feito pelo executivo anterior. Tome-se, por exemplo, o caso da educação. Para Ministro, António Costa recrutou um doutorado em bioquímica que residia há 15 anos no estrangeiro e não entrava numa escola desde que concluiu o ensino secundário. É certo que, por se ter especializado na investigação sobre o cancro, Tiago Brandão Rodrigues parece invulgarmente qualificado para lidar com o Ministério que lhe foi atribuído. Tragicamente, escolheu para principal conselheiro Mário Nogueira, que se assemelha perigosamente a um tumor maligno do sector.



Ainda o Ministro não era Ministro e já as esquerdas parlamentares aboliam os exames do 4º ano. António Costa jurava então que “o programa de governo é muito claro” e que os exames do 6º ano eram para manter. Foi sol de pouca dura. Volvido um mês, Brandão Rodrigues veio anunciar o óbito de ambos os exames e a sua substituição por provas de aferição realizadas a meio do ciclo de ensino, sem qualquer impacto na classificação dos alunos. A Confederação das Associações de Pais manifestou dúvidas face à eficácia de testes sem valor vinculativo. O Conselho Nacional de Educação criticou a opção pela avaliação intercalar, que esvazia os testes de significado e impede a aferição, necessariamente feita no final de cada ciclo de ensino, e não a meio. Milhares de professores abismaram-se com a adopção de alterações tão profundas em Janeiro, depois de três meses de aulas. Democrata como Luís XIV, o Ministro avisou que “quem governa somos nós”. E, para que fique bem claro, governar significa acatar os conselhos pedagógicos de Catarina Martins, patrona da “escola feliz” desde que sem exames, e do professor Mário Nogueira, que fala de educação com a propriedade de quem entrou numa sala de aulas pela última vez quando o Ministro ainda era menor de idade.

De seguida, na ânsia sôfrega do processo revisionista em curso, deparou-se o Ministro com a questão da autonomia das escolas. Com Nuno Crato, abrira-se espaço a que a direcção de cada escola estabelecesse critérios próprios de contratação, em vez de se limitar a receber os professores atribuídos pelo Ministério. Brandão Rodrigues poderia ter aprofundado este modelo, entregando às escolas públicas instrumentos de gestão semelhantes aos das escolas privadas, em benefício da concorrência justa. Em vez disso, preferiu desfazer as reformas do seu predecessor e reforçar a centralização das contratações. Ao abolir as Bolsas de Contratação de Escola, prejudica quem mais beneficiava delas: escolas públicas com contratos de autonomia e escolas situadas em Territórios Educativos de Intervenção Prioritária (TEIP), com contextos socioeconómicos difíceis.

Em apenas dois meses, Brandão Rodrigues tornou-se depositário do pior do experimentalismo pedagógico e do radicalismo ideológico. À Comissão Parlamentar de Educação, repetiu que “a cultura da nota é nociva” e cria “uma escola selectiva”. Trocado por miúdos, o Ministro prefere uma escola sem avaliação, porque a avaliação diferencia e a diferenciação perverte. Prefere também uma escola pública monolítica e centralista, capitaneada a partir do seu gabinete, do que um modelo descentralizado, adaptado às necessidades de cada comunidade. Entre o reconhecimento do mérito e o igualitarismo, a diversidade e a uniformização, vai escolhendo o caminho que os sindicatos prescreverem e a esquerda radical consentir. A mensagem oficial é a do nivelamento por baixo. As famílias mais abastadas responderão inscrevendo os filhos em escolas privadas e explicações complementares. As restantes, inteiramente dependentes da escola pública, são os danos colaterais de uma política feita em seu nome, mas que as condena.

sábado, 9 de janeiro de 2016

O Inverno Marcelista

O Inverno Marcelista
02:22 por António Pedro Barreiro

Publicado no Observador

Max Weber, que escreveu abundantemente sobre a vida interna das organizações políticas, descobriu o maior teste de vitalidade destas instituições na sua capacidade de sobreviver para além do fundador. No culminar de um ano em que se testaram e se romperam tantas convenções políticas, a não-recandidatura de Paulo Portas à liderança do CDS sujeita a direita portuguesa a essa prova.

Portas não integrou a primeira geração de militantes do CDS, mas participou na fundação da direita moderna no nosso país. Para lá das fronteiras partidárias, deve-se a si e a Esteves Cardoso a destruição da muralha de aço que a esquerda levantara em torno dos meios culturais. Portas trouxe o conservadorismo à cidade e emprestou-lhe a anglofilia, o humor e o descaramento. Conquistou para a direita um terreno próprio de afirmação, longe dos perfumes do saudosismo e contra o cinzentismo tecnocrático cavaquista.

Goste-se mais ou menos da figura, é indiscutível que a passagem de Paulo Portas pelo jornalismo e pela política marcou o substrato moderno da direita portuguesa e granjeou-lhe margem de afirmação própria. Consigo, o CDS – entretanto transmutado de Partido do Centro em Partido Popular – reintegrou o arco da governação, sem ingressar no arco constitucional vigente. Portas ainda era vice-primeiro-ministro quando respondeu a Ricardo Araújo Pereira que lhe parecia mal que o preâmbulo da Constituição pretendesse lançar a sociedade a caminho do socialismo. “É um bocadinho maçador”, disse. Pois é.

Na hora da partida de Portas, a direita está invulgarmente frágil. Em primeiro lugar, tendo vencido eleições legislativas, viu o segundo classificado vender a alma ao diabo – o grau de literalidade da expressão fica ao critério do leitor – para aceder ao poder. Depois, julgando certa a vitória nas eleições presidenciais, tem percebido a inevitabilidade da derrota, na medida em que não se apresentou qualquer candidato alinhado consigo.



Marcelo, comentador magnânimo que distribuía salomonicamente elogios ao longo do espectro partidário, reinventou-se como amigo secreto de António Costa, pronto a oferecer-lhe a placidez de uma “magistratura de influência discreta”. O prelúdio da campanha, celebrado na Festa do Avante, deu lugar a outras procissões, sempre nos mesmos adros. Marcelo abençoou a Geringonça com apelos à estabilidade. Marcelo esquivou-se sempre a esclarecer se teria, como o Presidente Cavaco, empossado Passos Coelho. Marcelo apresentou a candidatura na Voz do Operário. Marcelo aplaudiu a solução encontrada para o Banif. Marcelo desdenhou o apoio de Passos Coelho. Marcelo, diplomata antes de qualquer outra coisa, lavou as mãos dos seus princípios e proclamou que o Presidente, tendo uma obrigação de neutralidade institucional, não pode vetar a adopção por casais do mesmo sexo ou a agilização dos abortos.

Com sucessivas machadadas no seu eleitorado tradicional, o Professor esforça-se por esculpir uma direita à imagem da esquerda. Onde houver dúvidas, acena com consensos. Onde subsistirem fracturas, semeia silêncios que cheiram a tabus. E, entre espartilhos e complexos, avança. Com toda a confiança. O seu projecto de unificação nacional em torno do vácuo arrisca não entusiasmar a direita nem reunir a esquerda. Mas a solicitude com que tem rendido espaço e discurso à esquerda contamina o esforço de afirmação do conservadorismo descomplexado de Portas e da insurgência liberal de Passos.

Em anos de chumbo, Passos e Portas tiveram o mérito da autenticidade. Em tempo de vésperas, o prelúdio do marcelismo é a vitória da nebulosidade. Pelo jogo de nervos em que enredou a direita, Marcelo afirma-se, por direito próprio, anti-Passos e anti-Portas. Na vitória ou na derrota, na primeira volta ou na segunda, a direita que o beba provará cicuta com sabor a vichyssoise. Insonsa, até que a esquerda lhe acrescente sal.