Há quarenta anos atrás, o 7 de Setembro de 1974. Em Lusaca, debaixo do beneplácito da Zâmbia comunista, uma delegação portuguesa liderada por Mário Soares, Almeida Santos, Vítor Crespo e Melo Antunes preparava-se para entregar Moçambique à FRELIMO incondicionalmente. Esquecido ficava o sonho de um Moçambique plurirracial, multipartidário e democrático. Ironicamente, eram alguns dos maiores críticos do colonialismo português a reclamar o direito de decidir sozinhos, sem escrutínio e à porta fechada os nomes e a filiação partidária dos futuros governantes do território. Moçambique, parecia, era para a FRELIMO e não para os moçambicanos.


No entanto, ao mesmo tempo que a tinta corria no acordo entre as altas esferas portuguesas e o apparatchik da FRELIMO, uma maioria silenciosa de habitantes de Moçambique, bem representativa da diversidade étnica e religiosa do território, agigantava-se nas ruas para reclamar o seu direito a decidir. Sobre a mesma calçada, negros, brancos, mestiços, indianos e chineses misturavam gritos pelo “Moçambique livre e independente” com interpretações emocionadas do hino português. Talvez as gentes que marchavam pelo centro de Lourenço Marques naquela tarde não soubessem exactamente o que queriam. Sabiam que não queriam Lusaca. Sabiam que eram dali, por opção ou por fado – nunca por fardo. Sabiam que aquela era a sua terra, dos macios torrões ferrosos encimados pelo capim à vanguardista malha urbana que rodeava as grandes avenidas centrais de Lourenço Marques. Não falavam em Rodésias, nem em Áfricas do Sul, nem na metrópole distante que lhes dera os prosélitos de Lusaca. Mas falavam naquela terra. Na sua terra. Sabiam-se dela tanto quanto a terra era deles. E sabiam que não queriam ter de sair.

Caberá à historiografia estudar os acontecimentos dramáticos daquele dia. Caberá aos académicos do futuro imortalizar o brilho selvático das catanas, o terror de quem saíra para defender o seu e os seus e acabou sem nada, muitas vezes sem a própria vida. Caberá aos politólogos que hão-de vir interpretar o silêncio dos homens de Lusaca e aos políticos que ainda não vieram perceber a importância daqueles acontecimentos para o desencanto de tantos portugueses. Mas cabe-nos a nós – a todos nós – lembrar o dia em que morreu o sonho do Moçambique plurirracial. Cabe-nos a nós assegurar que os manifestantes assassinados pela FRELIMO na revolta de 7 de Setembro não são escamoteados por conveniência doutrinária. Eu, que sou filho e neto de quem marchou naquele dia; de quem deixou uma vida e uma terra para trás, embarcando por entre corpos retalhados para refazer a vida em Portugal, não me conto entre as fileiras dos saudosistas do passado. Mas sei que a História não se escreve a preto e branco; com vilificações e endeusamentos. Nem se escamoteia. Naquele 7 de Setembro de há quarenta anos, fez-se mais História em Moçambique do que em Lusaca. Com negros, brancos, mestiços, chineses e indianos. Com uma imensa e diversa massa humana. Que era da terra tanto quanto a terra era sua.