Publicado no Observador.

Em 1828, Andrew Jackson foi eleito Presidente dos EUA. Empossado aos 62 anos de idade, Jackson era alto e espadaúdo, senhor de uma impressionante juba grisalha e, segundo consta, absolutamente intratável. Nascera num acampamento de colonos na Carolina do Norte, filho de imigrantes irlandeses, e dividira a vida entre a advocacia e a carreira militar. Aos 46 anos, vencera a Creek War, expulsando as tribos índias do Alabama e da Geórgia. Aos 52 anos, encabeçara a invasão da Flórida espanhola e tornara-se governador militar do território.

Jackson era encarado como um herói do homem-comum. Nas eleições presidenciais de 1824, reunira a maioria do voto popular, mas os seus adversários arquitectaram um acordo de bastidores para entregar a Casa Branca a John Quincy Adams, filho do ex-Presidente John Adams. Quatro anos depois, Jackson venceu com uma maioria incontestável. Tornou-se então no primeiro Presidente nascido longe da Nova Inglaterra, e das primeiras colónias americanas. O seu estilo truculento e informal entusiasmava as comunidades agrárias do Sul e os colonos que desbravavam a América profunda, mas horrorizava as grandes cidades da Nova Inglaterra. A sua história de superação da pobreza emprestava-lhe uma mística meritocrática e permitia-lhe construir uma narrativa de ascensão pessoal, mas chocava frontalmente com um certo elitismo do Nordeste americano.



Famosamente, a Universidade de Harvard viria a oferecer ao Presidente um doutoramento honoris causa, apenas para o forçar a expor publicamente o seu parco domínio de latim (era costume as personalidades agraciadas com esta distinção fazerem uma comunicação nesta língua). Jackson ter-se-á levantado, repetido o mote latino dos EUA – et pluribus unum – e justificado a sua pronúncia macarrónica com a ideia de que “só uma mente muito fraca não consegue pensar em pelo menos duas formas alternativas de pronunciar cada palavra”.

A eleição de Andrew Jackson tem sido frequentemente lida como uma convulsão interna numa sociedade em mudança. O alargamento do sufrágio a todos os homens brancos diluiu o poder relativo da Nova Inglaterra e deu representação aos interesses da América profunda. Jackson cavalgou esta clivagem, esgrimindo o apoio popular contra as elites políticas tradicionais. E as elites, desdenhando do seu projecto e cerrando fileiras para o manter à distância, apenas lhe deram força.

Jackson era desconcertante e polémico. Publicamente céptico face às instituições tradicionais, anunciou um combate alargado contra a corrupção, substituiu a uma escala inaudita funcionários governamentais por homens da sua confiança e preferia aconselhar-se com um conjunto de assessores informais.

No plano interno, encarnou uma forma visceral de patriotismo. Ele próprio um colono, propunha-se intensificar o desbravamento do Oeste e dar cumprimento ao destino manifesto dos EUA à grandeza. Dispensou pouca clemência às tribos índias, que via como uma ameaça interna e um obstáculo à afirmação do projecto americano. Desconfiava publicamente dos programas de assimilação dos nativos e preferiu removê-los das suas terras, dando origem ao trágico Trilho das Lágrimas, o êxodo forçado de milhares de índios americanos.

Jackson protagonizou uma desinstitucionalização do poder, um combate anunciado contra as elites e um discurso de permanente bravata populista. A política americana, tradicionalmente circunscrita a uma discussão sobre a forma de limitar o poder, incorporou um novo desejo de participação política por parte de comunidades historicamente afastadas do processo democrático. Tocqueville viria a descrever com grande beleza as dinâmicas de associativismo localista e descentralizado que se desenvolveram nestas comunidades rurais, protagonistas da democracia jacksoniana.

É impossível não reparar nas similitudes entre o irascível e polémico Andrew Jackson e o novo Presidente norte-americano. Trump, que é pelo menos tão imprevisível quanto este seu antecessor, assemelha-se-lhe no programa, no carisma e até na base de apoio. Daqui advêm duas boas notícias. A primeira é que existe um momento no passado recente da América que nos pode oferecer uma chave-de-leitura – limitada, é certo – sobre a Administração Trump. A segunda é que o sistema constitucional americano já sobreviveu anteriormente a uma insurgência populista. Valha-nos isso.