Estive em Auschwitz em Janeiro de 2016. Lá, onde o frio cortante atravessa todos os casacos. Lá, onde as árvores engordam as copas mergulhando fundo as raízes e engolindo golfadas de carne queimada. Lá, onde a passarada deixou de voar, por causa do cheiro putrefacto que cauterizava as narinas e enlouquecia os cérebros. Lá, onde se consegue apontar o inferno num mapa; onde a engrenagem do mal parece pronta a funcionar novamente. 

Para o crente, Auschwitz é um soco nos pulmões. “Onde estava Deus?”, perguntou famosamente o Papa Bento XVI. No museu, vêem-se os retratos daquela gente. Os rostos vazios de tudo, até de medo. Mares de cabelos a cheirar a tifo. Tachos. Roupas. Fotografias. Malas abertas com despudor. Vidas reviradas, violadas. E os pijamas. Os malditos pijamas pardacentos, sujos, ridículos. Pessoas transformadas em números. Uma máquina de triturar almas até ao limbo da não-existência. Onde estava Deus? 

Descemos às câmaras de gás e encontramo-las lúgubres, suadas e claustrofóbicas. Imaginamos todo o processo, como ele se desenrolava. Aquela é a capital da morte, as paredes negras embebidas de silencioso desespero. Onde estava Deus? 

Foi ao sair das câmaras de gás que primeiro O entrevi. O Cristo de Auschwitz, abraçado a uma Cruz de madeira e ferro. Coroado de arame farpado. Bebendo resignadamente a esponja intoxicada de Zyklon B. Onde estava Deus? Estivera no Seu próprio Calvário, suportando a roda baixa da fortuna, carregando os vitupérios dos outros, os pecados dos outros. Estivera igual a nós. Naquele momento, até o sudário puído me pareceu semelhante aos ridículos pijamas. 

Ao entrarmos na ala dos prisioneiros políticos, voltei a vê-Lo. Ao fundo do corredor, depois de salas apetrechadas com os piores instrumentos de tortura, ficava esse buraco gradeado onde morreu São Maximiliano Maria Kolbe. Aí, onde três Papas caíram de joelhos, alguém erigiu um pequeno memorial ao Santo. E aí estivera Deus. Nesse padre franzino que se lançara para a frente das botas dos guardas e exigira ser preso em vez de um pai de família. Nesse homem pequeno, frágil, vagamente patético, que fizera frente ao poder embriagado. Nesse saco de carne torturada e sacudida, a quem ninguém arrancara a alma. Ajoelhado para além da dor, a implorar à Mãezinha do Céu que transformasse a tortura em martírio. 

 Deus estava ali. Também ali esteve a 9 de Agosto de 1942, há 75 anos, quando morreu Edith Stein, Santa Teresa Benedita da Cruz. Ela, que Lhe ofereceu a vida como freira e teóloga, ofereceu-Lhe também a morte. Três dias antes, confessara-o: “Aconteça o que acontecer, estou preparada. Jesus está aqui connosco”. 

Para o crente, Auschwitz é um soco nos pulmões. Porque nos recorda que um Deus todo-poderoso não é um ídolo perfumado e asséptico, apartado das nossas misérias e imune aos nossos sofrimentos. O bom Deus caminhou sobre a lama de Auschwitz e arrancou luzernas de santidade numa fábrica que só servia para produzir desgraça e sofrimento. Que Santa Teresa Benedita da Cruz, Padroeira da Europa, no-lo recorde sempre.