sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Dos Homens e dos Deuses

Dos Homens e dos Deuses (2010) é um dos filmes mais notáveis que vi nos últimos anos. É também um grandioso hino à fidelidade, o que, nos dias que correm, não é coisa pouca. 

O filme revolve em torno da história verídica de uma comunidade de monges trapistas, incrustada em plena Argélia. Percorre os seus ritmos de oração, a rotina esmagadora de um dispensário hospitalar, a relação com as comunidades muçulmanas que vivem em torno do mosteiro. Durante todo o tempo do filme, pende sobre os monges a ameaça letal do fundamentalismo islâmico. Sucessivamente, chegam notícias de atentados, execuções públicas e conversões forçadas. Confrontados com a escolha entre partir e ficar, cada um dos monges atravessa o seu próprio Getsémani. No fim, todos decidem ficar, sabendo que tal significará, com toda a probabilidade, a morte. 

É nesse momento, em que tudo está consumado, que surge esta cena extraordinária. A comunidade à volta da mesa, para tomar a Última Ceia; o Lago dos Cisnes de Tchaikovsky a ressoar; a aceitação plácida do cálice e de tudo o que ele significa. Durante cinco minutos, os monges trocam olhares, engolem hesitações, despedem-se com lágrimas serenas, gargalhadas incrédulas e sorrisos de aceitação. Não sei como se filma uma coisa destas. Não sei como se pode dizer tanto, numa cena muda. Podia ser Estêvão, o primeiro Mártir, ali à mesa, com o Padre Maximiliano Kolbe, morto em Auschwitz para salvar outros. Ou Paulo Miki, o mártir do Japão, ou Catarina de Alexandria, ou Inês de Roma, ou o Cardeal Van Thuan, fechado numa masmorra vietnamita. Faz-nos bem olhar para estes rostos na iminência da Quaresma. São os rostos de quem não tem nada a perder, porque tem tudo a ganhar.
















sábado, 20 de julho de 2019

A morte das catedrais

Publicado no Observador.

A Catedral de Notre-Dame não devia ter ardido. Não é justo, todos o sabemos. Sabemos que a Notre-Dame foi construída há mais de oito séculos. Sabemos que testemunhou, num lugar privilegiado, as páginas mais belas e as mais negras da História francesa. Sabemos que sobreviveu à Guerra dos Cem Anos, ao Terror jacobino, ao imperialismo napoleónico, à Comuna de Paris, às sangrentas batalhas da Primeira Grande Guerra e à experiência cruel da ocupação nazi. Sabemos, sobretudo, que a beleza da Notre-Dame nos falava sobre a eternidade. 

Obviamente, a catedral será reconstruída e, espera-se, devolvida à sua monumentalidade original. Impressiona, aliás, ver a determinação com que os franceses assumiram essa tarefa. Mas as catedrais, como bem lembrava o Arcebispo de Paris, não são apenas um monte de pedras. “Numa catedral, como numa pessoa humana, há um princípio de organização, um princípio de unidade, uma inteligência criadora.” A Catedral de Notre-Dame tem tudo isso. As suas torres altas estendem-se para o céu e os seus largos vitrais rasgam fendas para a luz. Cada uma das suas imagens, cada um dos seus altares, cada detalhe embutido no rendilhado dos capitéis, na fealdade das gárgulas ou na robustez dos contrafortes presta testemunho sobre um tempo que está para além do tempo. Sobre um critério que se ergue mais alto, acima das desventuras das circunstâncias e das culturas. 

 Nestes dias de choque, em que uma Europa profundamente secularizada chorou os danos provocados numa catedral católica, fomos recordados de que a beleza é uma linguagem que não conhece fronteiras. Mas fomos também confrontados com aqueles que, perante a catástrofe, quiseram contribuir para a destruição da Notre-Dame, negando a sua identidade de edifício religioso católico. Entre nós, a inevitável Fernanda Câncio indignou-se por ver o Presidente francês dar as suas condolências “a todos os católicos e a todos os franceses” e perguntou se, para lamentar o incêndio, era mesmo preciso inscrever-se “no guichet dos católicos”; Tiago Moreira de Sá, o homem que Rui Rio escolheu para as Relações Internacionais, sugeriu que a França convidasse “todas as religiões a participarem na reconstrução da Catedral, fazendo dela um exemplo de tolerância e de diálogo inter-religioso”; Maria João Marques decidiu que a Notre-Dame era (apenas) “um símbolo europeu” e que não pertencia àquilo que define como “clubismo cristão”. 

 Sob a aparência da tolerância, cada uma destas reacções esconde um profundo desprezo pela identidade histórica da Notre-Dame. Vêem-na como veriam um castelo, ou um palácio, ou uma casa de ópera, ou um monte de pedras, desde que fosse esteticamente apelativo. Vêem-na como uma ruína, uma sentinela do passado, uma lembrança do que já foi. Escapa-lhes à vista que a catedral não esgotou a sua função no dia em que terminou de ser construída, para ficar inane e magnífica, em jeito de glorificação do engenho de quem a levantou. 

A Notre-Dame pintada por Edwin Deakin (1893)


 A catedral de Notre-Dame, como todas as igrejas, foi erguida para ser um albergue da Fé; um testemunho vivo sobre a aliança entre Deus e os homens. Se ela é bela, todos podemos apreciar-lhe a beleza. Mas apreciá-la-emos ainda melhor se não fizermos da catedral uma ruína à força. Se compreendermos que ela está viva, porque é habitada por um povo que a ela acorre, com piedade e devoção, para celebrar os mistérios da sua Fé e para colocar diante de Deus o seu desejo de plenitude. As grandes igrejas europeias são importantes marcos da nossa História colectiva. Mas são também, e sobretudo, igrejas. E é importante que as tratemos como tal. Se não, não percebemos nada. 

Em 1904, no fragor de um grande debate sobre a laicidade em França, Marcel Proust escreveu um belo texto, sob o título «La Mort des Cathédrales». Proust propunha aos leitores que imaginassem o que restaria das velhas catedrais num tempo pós-cristão. 

Nesse grande silêncio da Fé, as catedrais subsistiriam, testemunhas solitárias, “mudas e abandonadas” de um credo esquecido. Na sua monumentalidade, continuariam a marcar a paisagem e a História dos homens. Atrairiam o olhar de todos, mas ninguém as poderia interpretar. Multidões se maravilhariam com a sua beleza, mas elas seriam “monumentos ininteligíveis”, incapazes de testemunhar as razões da sua construção; de comunicar a doutrina em nome da qual foram levantadas. 



A separação forçada e imposta entre a beleza das catedrais e a Fé é um divórcio lesivo para ambas as partes. As catedrais precisam da Fé, porque, como dizia Proust, “não são apenas os mais belos ornamentos da nossa arte, mas também os únicos que ainda vivem a sua vida integral; que permanecem em sintonia com o objectivo para o qual foram construídos”. E a Fé precisa das catedrais; precisa do Belo, para apresentar, no nosso tempo, sinais vivos da eternidade. Precisa do Belo para nos lavar os olhos, sujos pela absolutização da técnica, da eficiência, do progresso e da utilidade. Precisa do Belo, para nos explicar, demonstrando-o, que ele caminha a par e passo com o Bem e a Verdade. Precisa desse Belo que nos desarma e nos explica de onde vimos e para onde vamos. 
A primeira Missa celerada em Notre-Dame após o incêndio


Nas palavras de Proust, “poderíamos dizer às igrejas o que Cristo disse aos discípulos: «Se não comerdes mesmo a carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós» (Jo 6, 53). Essas palavras misteriosas, mas tão profundas do Salvador tornam-se, nesta acepção nova, um axioma estético e arquitectónico. Quando o sacrifício da carne e do sangue de Cristo, o sacrifício da Missa, não for mais celebrado nas igrejas, deixará de haver vida nelas”. Depois das chamas, a Catedral de Notre-Dame será reconstruída. Não como um monte de pedras, mas como um testemunho vivo dessa beleza que nos salva.


quinta-feira, 9 de agosto de 2018

O Cristo de Auschwitz


Estive em Auschwitz em Janeiro de 2016. Lá, onde o frio cortante atravessa todos os casacos. Lá, onde as árvores engordam as copas mergulhando fundo as raízes e engolindo golfadas de carne queimada. Lá, onde a passarada deixou de voar, por causa do cheiro putrefacto que cauterizava as narinas e enlouquecia os cérebros. Lá, onde se consegue apontar o inferno num mapa; onde a engrenagem do mal parece pronta a funcionar novamente. 

Para o crente, Auschwitz é um soco nos pulmões. “Onde estava Deus?”, perguntou famosamente o Papa Bento XVI. No museu, vêem-se os retratos daquela gente. Os rostos vazios de tudo, até de medo. Mares de cabelos a cheirar a tifo. Tachos. Roupas. Fotografias. Malas abertas com despudor. Vidas reviradas, violadas. E os pijamas. Os malditos pijamas pardacentos, sujos, ridículos. Pessoas transformadas em números. Uma máquina de triturar almas até ao limbo da não-existência. Onde estava Deus? 

Descemos às câmaras de gás e encontramo-las lúgubres, suadas e claustrofóbicas. Imaginamos todo o processo, como ele se desenrolava. Aquela é a capital da morte, as paredes negras embebidas de silencioso desespero. Onde estava Deus? 

Foi ao sair das câmaras de gás que primeiro O entrevi. O Cristo de Auschwitz, abraçado a uma Cruz de madeira e ferro. Coroado de arame farpado. Bebendo resignadamente a esponja intoxicada de Zyklon B. Onde estava Deus? Estivera no Seu próprio Calvário, suportando a roda baixa da fortuna, carregando os vitupérios dos outros, os pecados dos outros. Estivera igual a nós. Naquele momento, até o sudário puído me pareceu semelhante aos ridículos pijamas. 

Ao entrarmos na ala dos prisioneiros políticos, voltei a vê-Lo. Ao fundo do corredor, depois de salas apetrechadas com os piores instrumentos de tortura, ficava esse buraco gradeado onde morreu São Maximiliano Maria Kolbe. Aí, onde três Papas caíram de joelhos, alguém erigiu um pequeno memorial ao Santo. E aí estivera Deus. Nesse padre franzino que se lançara para a frente das botas dos guardas e exigira ser preso em vez de um pai de família. Nesse homem pequeno, frágil, vagamente patético, que fizera frente ao poder embriagado. Nesse saco de carne torturada e sacudida, a quem ninguém arrancara a alma. Ajoelhado para além da dor, a implorar à Mãezinha do Céu que transformasse a tortura em martírio. 

 Deus estava ali. Também ali esteve a 9 de Agosto de 1942, há 75 anos, quando morreu Edith Stein, Santa Teresa Benedita da Cruz. Ela, que Lhe ofereceu a vida como freira e teóloga, ofereceu-Lhe também a morte. Três dias antes, confessara-o: “Aconteça o que acontecer, estou preparada. Jesus está aqui connosco”. 

Para o crente, Auschwitz é um soco nos pulmões. Porque nos recorda que um Deus todo-poderoso não é um ídolo perfumado e asséptico, apartado das nossas misérias e imune aos nossos sofrimentos. O bom Deus caminhou sobre a lama de Auschwitz e arrancou luzernas de santidade numa fábrica que só servia para produzir desgraça e sofrimento. Que Santa Teresa Benedita da Cruz, Padroeira da Europa, no-lo recorde sempre.












segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

A moral da História

Publicado no Observador.

Em 1828, Andrew Jackson foi eleito Presidente dos EUA. Empossado aos 62 anos de idade, Jackson era alto e espadaúdo, senhor de uma impressionante juba grisalha e, segundo consta, absolutamente intratável. Nascera num acampamento de colonos na Carolina do Norte, filho de imigrantes irlandeses, e dividira a vida entre a advocacia e a carreira militar. Aos 46 anos, vencera a Creek War, expulsando as tribos índias do Alabama e da Geórgia. Aos 52 anos, encabeçara a invasão da Flórida espanhola e tornara-se governador militar do território.

Jackson era encarado como um herói do homem-comum. Nas eleições presidenciais de 1824, reunira a maioria do voto popular, mas os seus adversários arquitectaram um acordo de bastidores para entregar a Casa Branca a John Quincy Adams, filho do ex-Presidente John Adams. Quatro anos depois, Jackson venceu com uma maioria incontestável. Tornou-se então no primeiro Presidente nascido longe da Nova Inglaterra, e das primeiras colónias americanas. O seu estilo truculento e informal entusiasmava as comunidades agrárias do Sul e os colonos que desbravavam a América profunda, mas horrorizava as grandes cidades da Nova Inglaterra. A sua história de superação da pobreza emprestava-lhe uma mística meritocrática e permitia-lhe construir uma narrativa de ascensão pessoal, mas chocava frontalmente com um certo elitismo do Nordeste americano.



Famosamente, a Universidade de Harvard viria a oferecer ao Presidente um doutoramento honoris causa, apenas para o forçar a expor publicamente o seu parco domínio de latim (era costume as personalidades agraciadas com esta distinção fazerem uma comunicação nesta língua). Jackson ter-se-á levantado, repetido o mote latino dos EUA – et pluribus unum – e justificado a sua pronúncia macarrónica com a ideia de que “só uma mente muito fraca não consegue pensar em pelo menos duas formas alternativas de pronunciar cada palavra”.

A eleição de Andrew Jackson tem sido frequentemente lida como uma convulsão interna numa sociedade em mudança. O alargamento do sufrágio a todos os homens brancos diluiu o poder relativo da Nova Inglaterra e deu representação aos interesses da América profunda. Jackson cavalgou esta clivagem, esgrimindo o apoio popular contra as elites políticas tradicionais. E as elites, desdenhando do seu projecto e cerrando fileiras para o manter à distância, apenas lhe deram força.

Jackson era desconcertante e polémico. Publicamente céptico face às instituições tradicionais, anunciou um combate alargado contra a corrupção, substituiu a uma escala inaudita funcionários governamentais por homens da sua confiança e preferia aconselhar-se com um conjunto de assessores informais.

No plano interno, encarnou uma forma visceral de patriotismo. Ele próprio um colono, propunha-se intensificar o desbravamento do Oeste e dar cumprimento ao destino manifesto dos EUA à grandeza. Dispensou pouca clemência às tribos índias, que via como uma ameaça interna e um obstáculo à afirmação do projecto americano. Desconfiava publicamente dos programas de assimilação dos nativos e preferiu removê-los das suas terras, dando origem ao trágico Trilho das Lágrimas, o êxodo forçado de milhares de índios americanos.

Jackson protagonizou uma desinstitucionalização do poder, um combate anunciado contra as elites e um discurso de permanente bravata populista. A política americana, tradicionalmente circunscrita a uma discussão sobre a forma de limitar o poder, incorporou um novo desejo de participação política por parte de comunidades historicamente afastadas do processo democrático. Tocqueville viria a descrever com grande beleza as dinâmicas de associativismo localista e descentralizado que se desenvolveram nestas comunidades rurais, protagonistas da democracia jacksoniana.

É impossível não reparar nas similitudes entre o irascível e polémico Andrew Jackson e o novo Presidente norte-americano. Trump, que é pelo menos tão imprevisível quanto este seu antecessor, assemelha-se-lhe no programa, no carisma e até na base de apoio. Daqui advêm duas boas notícias. A primeira é que existe um momento no passado recente da América que nos pode oferecer uma chave-de-leitura – limitada, é certo – sobre a Administração Trump. A segunda é que o sistema constitucional americano já sobreviveu anteriormente a uma insurgência populista. Valha-nos isso.

sábado, 12 de novembro de 2016

Admirável Mundo Novo

Publicado no Observador.

Em Junho passado, com a América incendiada pela campanha presidencial, percorri a Califórnia de ponta a ponta. Caminhei nas avenidas de São Francisco e no microclima ultra-progressista da Universidade de Berkeley, onde o nome de Ronald Reagan permanece um tabu histórico e Bernie Sanders é exaltado como herói. A sul, visitei a Biblioteca Presidencial que celebra o legado de Reagan, destino de romagem para milhões de conservadores americanos.

Numa destas viagens, enquanto o carro serpenteava pelos campos férteis de Central Valley, lembro-me dos enormes cartazes verdes com que as comunidades agrárias anunciavam aos visitantes que estavam a entrar em território de Trump. Em sucessivas vedações, largas faixas manuscritas prometiam combate a um sistema político corrupto, associavam Hillary a interesses financeiros obscuros e garantiam que um Presidente Trump estenderia a mão aos pequenos agricultores. Dentro do carro, a rádio transmitia uma palestra de Robert Reich, professor em Berkeley e célebre ideólogo da esquerda americana. Reich argumentava que, mesmo num clima político tão polarizado, existiam pontes entre o discurso económico da esquerda avessa à globalização e os receios da população mais conservadora, disposta a desconfiar do funcionamento do sistema político e decidida a preservar os ritmos de vida das pequenas cidades, contra a pressão modernizadora e o poder das grandes empresas.



Parecia-me impressionante como a narrativa de um professor universitário de esquerda se articulava com as categóricas tarjas dos trumpistas da Califórnia rural. E, no entanto, à esquerda e à direita, o debate já estava dominado por poderosas propostas de ruptura. Tal como Donald Trump, Bernie Sanders ocupava-se a denunciar a captura do sistema político por clientelas financeiras, defendia a retracção do comércio-livre em nome da protecção do trabalhador americano e explorava tensões económicas e raciais de forma populista. Ambos concordavam até na necessidade de restringir as intervenções militares americanas, embora Sanders o defendesse em nome de ideais pacifistas e Trump pretendesse privilegiar o interesse nacional americano.

Como Sanders, Donald Trump trabalhou o carisma de herói improvável, campeão do povo impotente contra os vícios de um sistema tentacular, que tratou de personificar na sua adversária. Desdenhado pelos analistas e subestimado pelas sondagens, foi repetindo que um sistema capaz de maltratar um homem tão rico quanto ele seria infinitamente mais cruel com a arraia-miúda.

O seu currículo de fama e sucesso económico foi profusamente admirado como prova de inteligência e capacidade política, sobretudo entre o eleitorado conservador, que é historicamente favorável a candidatos com experiência no sector privado. Soube apresentar-se como homem redimido que, depois de beneficiar das falhas do sistema, se colocava ao serviço do povo americano para as corrigir. E mesmo o seu discurso rude, desarticulado e populista foi sendo interpretado como uma manifestação de coragem e independência, face a uma cultura dominada pelos tabus do politicamente correcto.

Nos condados agrários da Virgínia, da Carolina do Norte, do Iowa, do norte da Flórida e das Grandes Planícies, Trump recolheu o apoio esmagador de populações conservadoras, apreensivas quanto aos desafios de um mundo em permanente mudança. Na cintura industrial do Midwest, o seu ataque à globalização e ao livre-comércio convenceu importantes bastiões operários, aos quais o esvaziamento sindical roubara os tradicionais mecanismos de representação política. Nas grandes áreas metropolitanas de Cincinatti, Filadélfia, Chicago ou Detroit, a existência de um discurso sobre a ordem pública e a reabilitação dos centros urbanos reduziu ligeiramente a desvantagem eleitoral histórica dos republicanos. E, em diversos subúrbios urbanos, a população com formação superior rejeitou Hillary a uma escala superior do que se previa.

A abrangência e a diversidade da coligação que elegeu Donald Trump parecem traduzir sinais importantes sobre a evolução política do eleitorado americano. É certo que, uma vez empossado, Trump será um chefe de Estado constitucional, com a capacidade de iniciativa limitada por um sistema de freios e contrapesos que garante o pluralismo e preserva a identidade do regime. Mas o simples facto da sua eleição aponta para um crescente descontentamento face ao rumo do processo de globalização, que não podemos menosprezar. Quer seja formulado por estudantes nas ruas sujas de Berkeley, ou pintado em faixas garridas, à beira da estrada sinuosa de Central Valley.

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

O Pecado do Capital

Publicado no Observador.

No sábado passado, a deputada bloquista Mariana Mortágua foi recebida com pompa e circunstância na rentrée política do PS, em Coimbra. Perante os ávidos aplausos da plateia socialista, a deputada Mortágua defendeu a necessidade de encontrar “uma alternativa global ao sistema capitalista” e a urgência de “ir buscar a quem está a acumular dinheiro”.

Entretanto, numa série de tweets doutrinários, Mortágua expandiu o seu raciocínio e explicou que não pretende penalizar a poupança, mas apenas a “riqueza acumulada”. Uma vez que a acumulação de riqueza é a definição textual de poupança, a deputada Mortágua sentiu a necessidade de explicar a diferença entre ambos os conceitos. E a diferença, muito claramente, está na quantidade.


Sucede então que a acumulação do vil metal não é reprovável, se for feita em pequenas quantidades. Mariana Mortágua explica: o pé-de-meia do “trabalhador de banco” é “poupança”. A fortuna de Ricardo Salgado é “riqueza acumulada”.

Para a dirigente bloquista – e, já agora, para o seu partido –, o putativo crime de Ricardo Salgado não foi fugir à lei, especular com poupanças alheias ou servir-se dos limbos do sistema para obter protecção política. O crime de Ricardo Salgado foi, pura e simplesmente, ter dinheiro. Acumular riqueza. E, por isso, no douto entender de Mariana Mortágua e da agremiação que a patrocina, nada distingue Ricardo Salgado de Steve Jobs, Bill Gates, ou de qualquer empresário bem-sucedido que paga impostos, cumpre a lei e acumula legitimamente o vil metal. São todos culpados de ser ricos.

É preciso que nos entendamos: a deputada Mortágua não defendeu uma taxação progressiva. Esse é um princípio politicamente consensual, consagrado no texto constitucional e aplicado desde sempre na história democrática de Portugal. O que a deputada Mortágua defende é o confisco de quem tem mais. Aliás, assume-o claramente quando escreve, em mais um tweet, que o que pretende é taxar a riqueza “que permite que o número de milionários aumente”. O objectivo claro e assumido é diminuir o número de milionários. Acabar com os ricos.

Para o Bloco, a justiça do sistema não está em criar regras iguais para todos, mas em torcer as leis para gerar os resultados que queremos. Menos ricos. Menos riqueza. Menos acumulação.

Os ricos, diz Mariana Mortágua, não pagam impostos suficientes. A classe média, por seu turno, paga. Se levarmos Mariana a sério, temos de perguntar onde está o limiar que separa a classe média e os ricos. Os bons e os maus. O trigo e o joio. A poupança e a acumulação. Onde deve traçar-se o limite entre quem “já paga muitos impostos” e quem ainda “não”? São 500 mil euros, como diz o Bloco? É um milhão de euros, como alvitra o PS? São 100 mil euros, como chegou a defender o actual Presidente francês, nos seus tempos de inefável socialista? Ou teremos de consultar a recta moralidade fiscal de Mariana Mortágua?

Vestida com novas roupagens, esta esquerda que agora parece apostada em fazer guerra à poupança e à criação de riqueza é precisamente a mesma que, desde há dois séculos a esta parte, se alimenta do divisionismo, da fractura social e da promoção da luta de classes. Não deve ser fácil depender politicamente da disseminação do ódio e da inveja.

Não consigo evitar um sorriso, sempre que oiço um amigo de esquerda acusar Donald Trump de fazer o jogo do ódio e da discriminação para ganhar votos. Na verdade, também eu me preocupo com o risco de alguma direita ceder a um discurso populista de recusa radical do cosmopolitismo e da globalização. Mas vejo-me forçado a constatar a persistência desse mesmo vício nos novos heróis da esquerda revolucionária moderna.

O excêntrico Bernie Sanders, o sendeiro Tsipras (na versão pré-acordo com a UE), o radical Jeremy Corbyn ou o pretendente-a-venezuelano Pablo Iglesias são ardentes apologistas deste discurso marginal e venenoso, que procura virar os 99% contra o 1%, o Norte contra o Sul, os trabalhadores contra os empresários, os funcionários públicos contra o sector privado. São esses os reluzentes telhados de vidro que adornam o perigoso discurso da deputada Mortágua. E foram esses telhados de vidro que o novo PS aplaudiu no fim-de-semana passado.